30 de nov. de 2008

Gol 'quadrado' vira cult e ganha aficionados

COMPORTAMENTO
No sábado, um grupo se reuniu em concessionária para exibir suas ‘máquinas’

A foto ao lado não é de arquivo nem foi tirada numa concessionária 20 anos atrás. Há um grupo de aficionados na capital que se orgulha dos Gols “quadradinhos”, nas esportivas versões GT, GTS e GTi, que a Volkswagen produziu de 1984 a 2000 - aqueles com faróis dianteiros redondos. Depois de alguns encontros pelo interior paulista, no sábado o clubinho se reuniu pela primeira vez em São Paulo. Das 13 às 17 horas, os integrantes exibiram seus “possantes” na frente da concessionária Volkswagen que fica na Avenida Cidade Jardim, esquina com a Brigadeiro Faria Lima. O velho Golzinho, quem diria, virou cult.

Os preferidos são os de 1994 para trás. Nada de Gol bolinha. “As pessoas têm uma admiração maior pelos quadrados”, acredita o comerciante Daniel de Napoles, de 26 anos. A paixão pelo modelo vem “desde moleque”. “Meu irmão tirou um GTS vermelho zero. Eu ficava sonhando”, conta. Hoje ele tem um igual, fabricado em 1993. Comprou no ano passado, por R$ 17 mil. “Conheço quem já chegou a pagar R$ 30 mil por um desses”, afirma. “Eu acho que é o carro mais bonito que existe.”

Daniel não costuma usar o Gol no dia-a-dia - para isso, tem um Palio 2007. Guardado, o Golzinho é bem mimado. “Troco óleo, faço revisão, limpo, dou polimento”, enumera. Por mês, calcula gastar mais de R$ 200 para manter o xodó. Quando tirou CNH, os Gols esportivos eram um sonho inacessível ao hoje analista financeiro Maurício Rugena, de 36 anos. Há cinco anos, já com a vida estabilizada, pôde concretizar o desejo de adolescente. “Comprei um GTS prata 89. Minha mulher fez um bico desse tamanho”, recorda, abrindo os braços.

De lá para cá, chegou a colecionar três. Mas era muita despesa e agora “só” mantém dois: um GTi azul 89 e a sua maior relíquia, o GT vermelho 84, do primeiro ano em que a Volks fabricou a versão. Como tem apenas duas vagas disponíveis na garagem de seu prédio - ocupadas pelo Corsa 2006 e pelo Ka 2007 que ele e a mulher usam diariamente -, precisa deixar as preciosidades em um estacionamento. “Gasto cerca de R$ 400 por mês, mas vale muito a pena”, diz. “Isso aqui é a minha higiene mental.”


Segunda-feira, 6 de outubro de 2008

29 de nov. de 2008

No tempo do Fontenelle

MEMÓRIA
A história do polêmico diretor de trânsito que ficou apenas 57 dias no cargo murchando pneus de quem ousava desrespeitar a lei

Para uns, gênio incompreendido. Para outros, doido varrido. Mas uma coisa com que todos concordavam é que o coronel reformado Francisco Américo Fontenelle, convidado pelo governador Abreu Sodré para solucionar os problemas do trânsito daquela São Paulo de 1967, era turrão, tinha pulso firme e sabia manter a disciplina. "O homem era bravo", lembra o engenheiro de transportes Isao Konno, que trabalhou com ele na época. Com status de celebridade, Fontenelle veio dirigir o Departamento Estadual de Trânsito (DET) paulista. "Ao assumir, ele convocou os vinte engenheiros e disse para esvaziarmos os pneus de carros estacionados em locais proibidos." A polêmica operação "esvazia-pneus" havia sido um marco da passagem de Fontenelle pelo departamento de trânsito do Rio de Janeiro.

Carioca, desde criança ele foi apaixonado por aviação militar. Formou-se oficial-aviador e fez cursos de aperfeiçoamento nos Estados Unidos. Na Força Aérea Brasileira, chegou à patente de coronel-aviador. Entre 1961 e 1965, ocupou diversos cargos públicos no antigo estado da Guanabara: coordenador de transportes, diretor do Departamento de Concessões, presidente da Companhia de Transportes Coletivos e diretor do Serviço de Trânsito, entre outros. Também executou planos de trânsito e transportes coletivos para Belém, no Pará, e São Luís, no Maranhão. Quando chegou a São Paulo, encontrou uma cidade na qual os problemas de tráfego começavam a se tornar rotina. A capital, de 5 milhões de habitantes, contava com 350 000 carros – e recebia 300 novos por dia (hoje são 950).

Fontenelle tomou medidas rápidas e agressivas. Combateu os estacionamentos irregulares e não perdoou quem parava em fila dupla. "Sei esvaziar pneus e ser violento", costumava dizer a quem o contestasse. Não parava em seu gabinete. Visitava diariamente todas as seções do departamento de trânsito e sempre ia para a rua fiscalizar, pessoalmente, o fluxo de automóveis. Criou um anel no centro – utilizando os viadutos Santa Ifigênia, do Chá e Jacareí – em que todas as ruas passaram a ser de mão única. Restringiu a circulação de veículos em diversas vias centrais e proibiu carga e descarga durante o dia. "São Paulo vai pegar fogo", anunciou o coronel, quando propôs tais mudanças.

Pegou mesmo. Mas queimou junto o seu cargo. No início de abril de 1967, quase dois meses após tomar posse, Fontenelle foi demitido pelo governador. Em julho, já afastado, compareceu a um programa de TV para defender suas idéias. Durante o debate, excedeu-se e foi vítima de um infarto – o segundo de sua vida. Morreu diante das câmeras. Tinha 46 anos. Hoje, 41 anos depois, todos os dias há motoristas e pedestres paulistanos trafegando pelos 500 metros da Rua Coronel Américo Fontenelle, na Penha. A maioria sem ter idéia de quem foi o homem que respirava trânsito e tinha convicção de que era possível melhorá-lo.


Quarta-feira, 2 de julho de 2008

28 de nov. de 2008

O caminho das rosas até a sua casa

CONSUMO
O 'Estado' percorreu toda a rota de produção e distribuição das flores que chegam a SP, a partir de Holambra

Sexta-feira, 9h45. Quando a advogada Patrícia Neves chegou ao trabalho, no Morumbi, foi surpreendida com um ramalhete de rosas vermelhas. O cartão trazia cumprimentos pelo seu aniversário de 28 anos. Mimo de suas colegas de empresa, foi um dos 3 mil buquês vendidos naquele dia na cidade.

Desnecessário dizer que Patrícia ficou feliz com o presente. É claro que na hora jamais passaria por sua cabeça o tamanho do trajeto percorrido pelas rosas até as suas mãos. Mas o caminho foi longo.

Em Holambra, a 120 quilômetros da capital, há cerca de 240 produtores de flores. Na maioria, descendentes dos holandeses que fundaram a cidade, em 1948. Holambra é conhecida pelo cultivo de plantas ornamentais. As rosas que Patrícia ganhou, da variedade vegas, saíram de uma das três fazendas dos irmãos Van Rooijen.

É Bernardo Van Rooijen, o Benny, quem conta como funciona a produção. Após o plantio da muda, uma roseira demora um ano para começar a dar flores. Cada hectare de terra comporta de 40 mil a 60 mil pés. Em média, uma roseira produz uma rosa a cada quatro dias e tem vida útil de cinco anos.

A propriedade de Benny emprega 70 funcionários que ganham por volta de R$ 600 por mês - além de moradia, já que ali há casas para os empregados. Fazem de tudo: plantam, podam, adubam, pulverizam venenos, colhem, classificam e embalam.

Silvana Pantaleão e Marina Aparecida estavam na colheita quando receberam a reportagem do Estado. É uma cena poética. Andam pelos corredores entre as roseiras cortando os ramos mais bem formados e, quando terminam a fileira, têm nos braços um ramalhete bruto. Que é depositado em um balde com água, para depois ser recolhido por um trator com carretinha.

Silvana não tem idéia de quantas rosas colhe por dia. Fica feliz nos fins de semana, “quando a gente pode levar umas para enfeitar a casa”. Marina não se esquece da única vez na vida que ganhou um buquê. Foi do marido, há exatamente uma década. “Era meu aniversário de 27 anos”, lembra. Na época, ela já trabalhava no cultivo de flores.

Toda a colheita é levada para um barracão, onde funcionários aparam os caules das plantas e as embalam - as feinhas são descartadas. Depois, tudo é guardado em uma câmara fria, dentro da qual a temperatura beira os 5°C. À tardinha, um caminhão passa recolhendo a produção. Na manhã seguinte, às 6 horas, haverá mais um leilão.

POR ATACADO
Logo na entrada, a placa anuncia. Veiling significa leilão, em holandês. É o coração comercial da região. Numa área de 93 mil metros quadrados funciona uma estrutura européia, copiada da Holanda, de venda atacadista. Trezentos produtores da região são associados e escoam suas mercadorias por ali. Os leilões ocorrem diariamente, das 6 às 10 horas. Vai gente do Brasil todo para comprar. Só no ano passado, o veiling comercializou 188 milhões de plantas e movimentou R$ 208,7 milhões.

Trata-se de um sistema eletrônico, caótico como uma bolsa de valores. Cada lote é vendido em impressionante 1,8 segundo. Dois leiloeiros anunciam as mercadorias ao mesmo tempo, no auditório onde ficam os compradores. É um leilão invertido. O valor começa alto e vai caindo, até surgir um interessado.

Na quarta-feira, estavam no martelo as flores colhidas na terça. Entre as compras do empresário Alipio Artuzi, destacavam-se 960 rosas produzidas em uma das fazendas dos Van Rooijen. Cada uma custou R$ 0,38.

“O preço ideal para o produtor seria de pelo menos R$ 0,50”, reclama Benny. “Nosso custo ultrapassa os R$ 0,30.” Mas ele concorda que basta um mês bom para compensar aqueles em que os preços não estão, assim, um mar de rosas. Próximo ao Dia das Mães, a unidade chega a valer R$ 0,90.

Alipio trouxe as mercadorias para a capital ainda na quarta. Aos 43 anos, é considerado um bem-sucedido empresário do ramo. Desde os 14 trabalha com flores - já plantou, vendeu e, em 1991, abriu sua empresa, a Milplantas. “Nunca canso de ver uma flor bonita”, sorri. Vai pessoalmente ao veiling, três vezes por semana. Em São Paulo, vende tanto em sua loja como na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), ambas na Vila Leopoldina, zona oeste. Há duas grandes feiras de flores na Ceagesp, às terças e sextas. Até 8 mil pessoas costumam freqüentá-las, atendidas por pouco mais de mil fornecedores.

FLORES PONTO COM
A manhãzinha ainda estava escura às 6 horas de sexta-feira quando a empresária Fatima Casarini foi às compras na Ceagesp. Acompanha todos os passos de seu negócio - compra as flores, revisa os arranjos e libera as entregas. A Flores Online foi uma sacada de seus filhos, que em 1998 sugeriram à mãe criar a primeira floricultura virtual brasileira. Deu certo. No ano passado, a empresa fez 120 mil entregas.

Na Ceagesp, Fatima conhece os atacadistas pelo nome. Reclama quando algum não traz o que ela precisa e sai distribuindo vales a cada negócio que fecha - depois esses papeizinhos são trocados por dinheiro em sua empresa. No box de Alipio, comprou aquelas rosas vermelhas. Cada uma custou R$ 1,10. As mercadorias são carregadas por profissionais sindicalizados, todos de uniforme amarelo. Há quatro anos, Cícero dos Santos é o carregador oficial de Fatima. Cobra R$ 15 o carreto - o preço é tabelado.

BUQUÊ
Às 7h30, as mercadorias chegam ao ateliê da floricultura. Ali, os 90 funcionários trabalham quase em linha de produção. Em 20 minutos, as rosas vermelhas viram um belo arranjo. Trabalho pronto, hora da entrega. O buquê recebido por Patrícia, a advogada do começo da história, custa R$ 79. Daqui a menos de duas semanas terão seu fim natural. As que eram belas vão se tornar podres. E irão para a lata de lixo. Até o fechamento desta reportagem, porém, suas 18 rosas vermelhas iam bem, obrigadas.


Domingo, 31 agosto de 2008

27 de nov. de 2008

Caçadora de pacientes

PERFIL
Ela faz um trabalho de detetive da saúde: ir atrás de quem passou pelo Hospital do Câncer e desapareceu sem dar notícias

Ela não é médica nem enfermeira, mas conhece bem as agruras enfrentadas por pacientes que lutam contra o câncer. Todos os dias, Sizuko Kawano – que recebeu dos colegas o apelido de "Alice" – faz mais de quarenta ligações para saber a quantas anda o tratamento dessas pessoas. Auxiliar administrativa do Serviço de Arquivo Médico e Estatística (Same) do Hospital do Câncer, na Liberdade, sua função é acompanhar a vida de ex-pacientes que, por alguma razão, não voltaram a procurar o hospital. "Quem teve câncer precisa ser acompanhado periodicamente por toda a vida", explica o médico Humberto Torloni, coordenador científico do Same. "É como se abrisse uma conta-corrente vitalícia conosco."

Após encerrado o tratamento, as consultas vão se tornando mais esparsas. Em geral, no ano seguinte à recuperação o paciente retorna seis vezes ao hospital. Do sexto ano em diante, ele precisa ir até lá uma vez a cada doze meses. Nesse meio-tempo, muitos deixam de dar notícia. "É quando a Alice entra em ação", diz Torloni. Desde 1966, essa filha de imigrantes japoneses, que tem 70 anos, se dedica a localizá-los, de segunda a sexta, das 7 às 17 horas. Seu trabalho parte dos prontuários médicos do hospital – são 300.000, distribuídos em 58 prateleiras –, nos quais ela checa as informações e o histórico de cada um. Com freqüência, o telefone e o endereço mudaram. "O mais usual é procurar pelo nome no site da Telefônica", conta Alice. "Mas, quando o sobrenome é muito comum, a coisa complica." Outro problema é que, com a proliferação dos celulares, muitos desses pacientes já não têm linha fixa.

Quando não consegue contatá-los pelas vias normais, ela apela para cartórios, prefeitura ou delegacias. Se quem está sendo procurado morreu, Alice precisa saber a data e a causa da morte. Para fins estatísticos, é importante anotar no prontuário se o óbito foi conseqüência do câncer ou não. "Várias pessoas não compreendem minha função", lamenta. "O pior é quando ouço desaforos de parentes logo na primeira ligação do dia." Há alguns anos, por exemplo, uma família foi até o hospital para saber quem era a "bisbilhoteira" que queria saber sobre o parente recém-sepultado. "Disseram que iam me processar e ameaçaram me bater."

Alice procura manter a frieza e não se envolver com os ex-pacientes. Nem sempre consegue. "Certa vez, pelo nome, reconheci um velho amigo de escola", lembra. "Fiquei muito triste porque ele não sobreviveu ao tratamento." Viúva há catorze anos, sem filhos, ela mora sozinha a poucas quadras do hospital. Antes de se tornar investigadora de pacientes, trabalhou como bóia-fria e, logo que chegou a São Paulo, foi balconista de uma loja na Rua 25 de Março. "Considero meu trabalho aqui uma missão", diz. Nas horas vagas, pinta quadros – faz aulas toda terça-feira – e, duas vezes por semana, pratica natação. "São minhas terapias, quando consigo esquecer um pouco o stress de tantas ligações telefônicas."


Quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

26 de nov. de 2008

Quatrocentona, biblioteca dos monges passa por informatização

CULTURA
Nos últimos seis anos, 12 mil dos 100 mil títulos do tradicional Mosteiro de São Bento já foram catalogados

Oásis de repouso, tranqüilidade e oração no meio do caótico e barulhento centro de São Paulo, o Mosteiro de São Bento esconde, dentro de seus domínios, uma rica biblioteca, possivelmente a mais antiga da cidade. São 100 mil títulos, sobretudo dedicados à área de Humanidades, como Religião, Filosofia, Literatura e História. Nos últimos seis anos, esse vasto acervo - recheado de obras raras - passa por um processo de reorganização e informatização. Um trabalho de formiguinha capitaneado por André de Araújo, de 29 anos, bibliotecário profissional contratado pelos monges. Ele conta com a ajuda de um assistente e de alunos-bolsistas da Faculdade de São Bento - atualmente são quatro. Até agora, o grupo deu conta de 12% do total do trabalho. Sim, se continuar nesse ritmo, a catalogação eletrônica completa levará meio século.

O tempo nunca foi problema para os religiosos da Ordem de São Bento, medieval organização religiosa fundada pelo santo católico que viveu entre os anos 480 e 550. As normas da vida monástica foram sistematizadas em um livro de 73 capítulos, de autoria atribuída ao santo e conhecido como Regra de São Bento. No coração de São Paulo, os 42 monges que abraçaram a ordem observam religiosamente, sem trocadilho, esse regimento.

Por isso, desde 1598, quando os beneditinos aqui chegaram, o silêncio da madrugada do claustro é rompido pontualmente às 5h05, quando um deles badala o sino que desperta todos os companheiros. Em 25 minutos, ficam a postos no altar da ainda fechada Basílica de Nossa Senhora da Assunção, a igreja contígua ao mosteiro, para entoar o Ofício Divino, primeira das cinco orações do gênero celebradas diariamente.

Assim como a oração, a leitura também está presente na Regra. O capítulo 48 recomenda que os monges se entreguem diariamente ao trabalho e aos livros. Isso fez com que historicamente todo mosteiro nascesse com uma coleção de obras. "Presume-se que já existisse uma biblioteca, mesmo que pequena, quando o mosteiro foi fundado, em 1598", afirma o bibliotecário André de Araújo. "Quando, na Idade Média, a cultura letrada praticamente desapareceu no Ocidente, ela sobreviveu na Igreja, graças, principalmente, aos mosteiros", completa o monge-bibliotecário Carlos Eduardo Uchôa, de 46 anos. O hábito de ler é cultivado até durante as refeições: enquanto os outros, em silêncio absoluto, comem, um monge fica responsável por recitar textos sagrados e trechos de livros de Filosofia ou História.

Na comunidade monástica, cada religioso tem sua incumbência. Há o cozinheiro, o alfaiate, o tesoureiro... Uchôa - ou dom Eduardo, como costuma ser tratado - entrou para o Mosteiro de São Bento há 13 anos. Três anos depois, assumiu a biblioteca. "Como sou historiador e artista plástico, naturalmente tenho uma predileção pelos livros", justifica ele, que acumula duas outras funções: é reitor do Colégio de São Bento e diretor da faculdade homônima, ambos anexos ao mosteiro.

ACESSO RESTRITO
Desde que os monges decidiram profissionalizar a gestão da biblioteca, dom Eduardo tem atuado como coordenador. É dele a palavra final na compra de novos títulos, por exemplo. "Sempre que precisamos de alguma obra nova, preciso levar o pedido até o dom Eduardo", confirma Araújo. Mas é o jovem bibliotecário, com seus cabelos longos e dois brincos em cada orelha, que cuida, não apenas do processo de reorganização por que passa a biblioteca, como do dia-a-dia de seu funcionamento.

Formado em Biblioteconomia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Araújo conheceu dom Eduardo quando estava preparando seu trabalho de conclusão de curso, em 2001. O tema escolhido foi justamente a importância das bibliotecas beneditinas ao redor do mundo. "Aí, quando acabei, vim até o mosteiro trazer uma cópia para presenteá-lo, em agradecimento", conta. Então decidiram contratá-lo. "Quando comecei a minha atuação, de forma alguma poderia jogar as regras da Biblioteconomia radicalmente aqui. Procurei respeitar o contexto existente e propor uma forma de organização que fosse coerente."

Como a biblioteca tem um caráter particular - ou seja, é voltada para o uso interno dos monges -, o acervo é fechado. Há duas entradas ao espaço. Uma, interligada ao claustro e de uso exclusivo dos monges, pode ser acessada a qualquer dia, a qualquer horário. "Um monge tem autonomia para retirar livro daqui quando quiser", explica Araújo. "Pedimos sempre que, quando não estamos trabalhando, eles nos deixem um bilhetinho avisando, para que saibamos onde está o exemplar." O bibliotecário admite, entretanto, que nem todos cumprem essa norma.

Já pela outra porta são recebidos os visitantes externos. Em geral, alunos do colégio e da faculdade, que podem utilizar os livros dali quando precisam - pesquisadores de fora também são recebidos, sob agendamento prévio. Mas nada de circular entre as estantes. O freqüentador pede o que quer e o bibliotecário - ou alguém de sua equipe - fica encarregado da procura pela obra. "De certa forma, é graças a isso que os livros antigos estão tão bem conservados assim", acredita Araújo. "É uma biblioteca com baixa circulação de pessoas."

Por falar em livros antigos, o acervo beneditino conta com 581 títulos publicados entre os séculos 15 e 18. "O cuidado é tanto que, ao catalogarmos essas obras, nem utilizamos etiquetas", diz o bibliotecário, mostrando uma tirinha de papel colocada entre a capa e a primeira página de um desses exemplares, com as informações que normalmente constam em etiquetas na lombada. O livro, aliás, é a edição de 1676 da Steganographia, do monge Johannis Trithemius, que aparecia no famoso índex de leituras proibidas pela Igreja Católica. "O autor foi muito perseguido", acrescenta.

Entre esses títulos há tesouros raríssimos, como seis incunábulos. São livros rudimentares, dos primórdios da imprensa, que mesclam o manuscrito com os tipos móveis. O mais antigo do acervo, de 1496, traz o Novo Testamento em quatro volumes. Há ainda um exemplar romeno de 1500 com a coleção de sermões de Pelbarti de Themefwar, um pregador húngaro.

Araújo aproveitou bem a oportunidade de vivenciar esse fabuloso universo editorial preservado pelos beneditinos paulistanos. Decidiu transformá-lo em tema para seu mestrado em História, cuja dissertação será defendida amanhã, às 14 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Com seus 100 mil títulos, a biblioteca principal não é a única mantida pelo Mosteiro de São Bento. Há uma outra, com 3 mil volumes, para servir ao colégio; uma de cerca de 500 obras à disposição do abade - a autoridade máxima da comunidade; e muitos são os monges que têm coleções particulares em suas celas.

PARA O PAPA LER
Durante as duas noites e os três dias em que esteve na cidade, em maio de 2007, o papa Bento 16 hospedou-se no Mosteiro de São Bento. Tudo foi preparado para que o líder máximo da Igreja Católica se sentisse bem acolhido. "Precisamos ficar atentos para qualquer coisa que ele precisasse. Fizemos plantão", lembra Araújo. "Mas o papa não chegou a vir para a biblioteca", conta.

Com a ajuda dos monges, o bibliotecário preparou uma seleção de 30 títulos que ficaram na cela que acomodou o papa. "Em caráter museológico, estão lá até hoje", revela. O acervo foi pensado como uma miscelânea de obras religiosas, culturais, artísticas, literárias e históricas. A maioria procurava mostrar ao líder católico um pouco do panorama brasileiro. Bento 16 pôde ler, por exemplo, os sermões completos de Padre Antônio Vieira em alemão. Ou se divertir com a prosa de Machado de Assis, com os livros Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Ressurreição e A Mão e A Luva. Mas deixou de conhecer a beleza da biblioteca dos monges paulistanos.


Domingo, 23 de Novembro de 2008