30 de abr. de 2009

Histórias de mesas centenárias

GASTRONOMIA
Em quatro capitais, os destaques de restaurantes que estão na terceira geração dos dois lados do balcão

Aos amantes da boa e velha - principalmente velha - gastronomia, São Paulo, Porto Alegre, Rio e Recife reservam estabelecimentos cujas histórias têm mais de 100 anos. Em geral, esses restaurantes conservam no cardápio pratos que os consagraram, como o fusili ao sugo e o cabrito ensopado da Cantina Capuano, inaugurada em 1907 na capital paulista; ou a sopa Leão Velloso, do Rio Minho, aberto em 1884 no Rio. A capital fluminense tem 12 casas centenárias no cardápio.

Há também um rol de curiosidades. O restaurante mais antigo de Porto Alegre, por exemplo, é de 1889, mas, até os anos 30, era restrito aos imigrantes alemães. Eles costumavam se reunir para confraternizações sob as bênçãos de Gambrinus - daí o nome do estabelecimento -, o deus dos cervejeiros.

O Leite, do Recife, é o mais antigo restaurante em funcionamento ininterrupto do Brasil. Aberto em 1882, já teve em suas mesas figuras como o jornalista Assis Chateaubriand, o sociólogo Gilberto Freyre, os presidente João Goulart e Jânio Quadros e o filósofo Jean Paul Sartre.

Em comum, todos esses restaurantes foram testemunhas de fragmentos da história de suas cidades - e, por consequência, do País. Ainda que tenha sido no intervalo para o almoço.

São Paulo:
Uma tradição que passou de italiano para italiano
Com um pouco de sorte, quem vai à Cantina Capuano nas noites de sábado pode apreciar uma exibição de música italiana ao som de clarinete e bandolim, executados pelo proprietário da casa, Angelo Mariano Luisi, de 89 anos. "Não é sempre, pois ele precisa estar disposto", avisa seu genro, Donato Rapolli. A administração do negócio, atualmente, é dividida entre as duas filhas de Luisi - Teresa e Elisabetta - e os maridos - Donato e Cosmo.

Fundada em 1907 pelo italiano Francisco Capuano, a cantina é considerada o mais antigo restaurante em funcionamento ininterrupto da cidade - o Carlino, aberto em 1881, ficou fechado durante três anos. O ex-proprietário tinha o hábito de fechar as portas da casa às 20 horas, não importando quem ficasse de fora. Servia o jantar e às 22 horas batia num ferro para mandar o pessoal embora.

Também italiano, Luisi veio ao Brasil em 1949. Trabalhou em papelaria e como músico. "Em 1960, estava em uma festa e soube que o Capuano queria vender sua cantina para voltar à Itália", conta, com carregado sotaque. "Então, comprei." Ele conta que, um ano depois, o antigo proprietário retornou e tentou comprar o restaurante de volta. Não teve negócio.

"Não sou cozinheiro, mas me adaptei bem", afirma ele. Até a morte, três anos atrás, quem comandava as panelas era a "patroa" - como ele diz, referindo-se à mulher, Angela. "Além de minhas filhas e genros, só temos um funcionário hoje", diz. "Um, só."

Quando foi fundada, a cantina funcionava na Rua Major Diogo, no Bexiga. Em 1968, se mudou para o endereço atual, na Rua Conselheiro Carrão, 416, no mesmo bairro.

Entre os pratos servidos ali, constam itens que, segundo Luisi, seguem as receitas de Francisco Capuano. "A brachola, o cabrito ensopado e o que não pode faltar: o fusili feito à mão ao molho sugo", enumera. O que mudou? As toalhas de papel foram substituídas pelas de pano. E não tem essa mais de mandar todo mundo embora às 22 horas. "Ficamos abertos até o último cliente", garante.

Porto Alegre:
A internet divulga, mas as comandas continuam de papel

Aos 120 anos, o Bar Restaurante Gambrinus guarda histórias de Porto Alegre e, ao mesmo tempo, conquista clientes de muitos lugares do mundo graças à modernidade. "Os sites de busca nos ajudam", reconhece o administrador João Alberto Cruz de Melo, de 30 anos, depois de constatar que a presença de forasteiros se multiplicou nos últimos anos. Os computadores, no entanto, não entraram no Gambrinus. As comandas para a cozinha e as contas para os clientes são exibidas no papel, anotadas com caneta. "É para manter o ambiente tradicional", justifica.

O Gambrinus tem dois ambientes e pode acolher 120 pessoas ao mesmo tempo. Um está no pátio interno do Mercado Público, cercado de floreiras. O outro, dentro do prédio, guarda resquícios da história. Numa das paredes, parte do reboco foi retirado para que os clientes possam observar o muro original, talvez erguido por escravos. Num canto, suspensa, está a cadeira na qual Francisco Alves, o rei da voz, sentava quando ia tomar a sopa da madrugada. A relíquia, na verdade, não é do Gambrinus, mas do Treviso, vizinho que fechou nos anos 80, e está exposta mais como lembrança do mercado do que do local. Além dela, há lustres e objetos do início do século 20 espalhados pelo salão.

O restaurante não teve sempre as mesmas características. Da fundação até os anos 30, era um espaço do Mercado Público cedido pela Intendência Municipal para confraternização de imigrantes alemães que diziam se reunir sob as bênçãos de Gambrinus, o protetor dos cervejeiros. Foi quando o casal de sobrenome Muller, que preparava as comilanças para a confraria, passou a abrir as portas também para o público, dando início ao período comercial da casa. Alguns anos depois, o restaurante passou para uma família italiana e, em 1964, foi adquirido pelos portugueses Antônio Dias de Melo, filho, e João Melo, pai. Em pouco tempo, João, irmão de Antônio, também entrou na sociedade. Agora, a administração segue sob comando da família, estando atualmente nas mãos da terceira geração.

Rio:
Entre idas e vindas, 12 que viraram roteiro turístico

No Rio, 12 bares e restaurantes centenários sobrevivem. O passeio por eles começa por um prédio de paredes descascadas e decoração ultrapassada. "Minha casa não é bonita. Mas tudo tem qualidade. Sem isso não passo", diz o espanhol Ramon Dominguez, de 66 anos, que em 1959 trocou a Galiza pelo Rio. Desde 1982 ele é proprietário do Rio Minho, na Praça XV, fundado em 1884. Ali eram servidos principalmente caldos quentes. No início do século 20, o restaurante caiu nas graças do Barão do Rio Branco - que tem foto, busto e cadeira que usava preservados por Dominguez. A sopa Leão Velloso, criada na cozinha do Rio Minho pelo embaixador que acabaria por batizar o prato, leva quatro horas para chegar ao ponto certo. Saem 60 litros por dia.

Os sócios do Aurora, fundado em Botafogo em 1898, também mantêm a tradição. "É quase um estatuto nosso: servimos porções generosas e cobramos um preço mais justo", diz Rodrigo Marques, que toca o negócio com o pai, Amílcar Marques, e o primo Marcelo Sereno.

Nem todos os centenários conseguiram ficar no mesmo endereço. O Capela, de 1903, teve de trocar o Largo da Lapa pela Rua Mem de Sá, por causa da abertura da Avenida República do Chile, em 1967. A Uisqueria Bico Doce, de 1895, deixou a Rua do Rosário, 74, no centro, por conta dos altos custos do imóvel. Mudou-se para o 76, na mesma rua. O Lamas (na foto) funcionou no Largo do Machado por 102 anos, até ser despejado para dar passagem ao metrô. Faz 33 anos que está no Flamengo, na zona sul. As confeitarias mais antigas da cidade - a Casa Cavé, de 1860, e a Colombo, de 1894 - se adaptaram aos novos tempos, respondendo à concorrência da comida a quilo com pratos executivos. A Colombo, com sua arquitetura art nouveau, é um dos dez pontos turísticos mais visitados do Rio. Dois dos centenários servem culinária alemã: o Bar Luiz, que surgiu como Zum Schlauch, em 1894; e o Bar Brasil, de 1907.

A volta pelas casas centenárias termina por Albamar (1906), Casa Paladino (1907) e Leiteria Mineira (1907).

Recife:
O mais antigo em funcionamento no Brasil

Fica na Praça Joaquim Nabuco, área central do Recife, o mais antigo restaurante em funcionamento ininterrupto do Brasil. O Leite foi inaugurado em 1882 e atravessou fases de glória e declínio, sabendo se transformar sem perder as características. Cento e vinte e sete anos depois de fundado pelo português Armando Manoel Leite - daí o seu nome -, o restaurante está prestes a se submeter a mais uma reforma interna - na qual está prevista a instalação de uma galeria de fotos que contam sua rica trajetória.

"O Leite sempre foi muito arrojado, acompanha seu tempo", afirma o também português Armênio Ferreira Diogo, de 78 anos, integrante da família Dias, à frente da casa desde 1955. Ali ele trabalha 17 horas diárias, embora advenha de outros negócios - casa de câmbio, comércio, rede de bares e outros restaurantes - o maior lucro da família. "Eu não vivo do Leite, mas trabalho em função da história do restaurante", diz Armênio, que costuma preparar os pratos para clientes especiais.

Desde 1885, quando se instalou no atual endereço, às margens do Rio Capibaribe, que corta a capital, a casa tem os alegres azulejos portugueses que decoram a fachada. O cardápio oferece 50 pratos - sem incluir petiscos, as sugestões diárias do chef e a capacidade de fazer pratos personalizados, ao gosto do freguês. A vasta carta de vinhos portugueses, o bacalhau da Noruega, os produtos frescos e o azeite que vem direto dos olivais portugueses são detalhes que fazem o restaurante.

Por suas mesas - as atuais, em número de 40, são da reforma de 80 anos atrás - passaram e passam figuras ilustres como o sociólogo Gilberto Freyre, o jornalista Assis Chateaubriand, velhos coronéis do apogeu da cana de açúcar, o poeta Ascenso Ferreira, os presidentes João Goulart e Jânio Quadros, o empresário Delmiro Gouveia e o filósofo Jean Paul Sartre.

Tantas histórias fizeram até mesmo que o restaurante virasse livro. A jornalista Goretti Soares publicou, em 2000, O Leite - Ao Sabor do Tempo.

em parceria com Angela Lacerda, Clarissa Thomé e Elder Ogliari.


Domingo, 19 de abril de 2009

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