23 de abr. de 2009

Tão longe, tão perto do marco zero

ELEIÇÕES 2008
Histórias de eleitores paulistanos separados por 51 quilômetros – do Largo São Francisco a Marsilac

Apenas 90 passos separam o zelador Francisco Guedes de Souza, de 64 anos, da urna onde vota, na Escola de Comércio Álvares Penteado, no Largo São Francisco, centro da capital – ali estão cadastrados 11.796 eleitores. Francisco mora no Palacete Chavantes, na Rua Benjamin Constant, a cerca de 100 metros do marco zero, na Praça da Sé.

Francisco, sua mulher Maria das Dores, de 57 anos, e os filhos André Luis, 31, e Fabiana, 27, são os eleitores que residem mais perto do coração geográfico da cidade. Para chegar às urnas, nem precisam atravessar a rua. Eles são os únicos moradores do prédio, um edifício comercial com escritórios de advocacia. Em toda a vizinhança, lotada de gente barulhenta durante o dia, restam apenas edifícios fantasmas à noite.

Corta a cena. A tomada seguinte é no extremo sul de São Paulo. Casas rareiam, mato sobra e apenas celulares de uma operadora funcionam. O bairro de Marsilac reúne 2,5 mil dos pouco mais de 8 mil habitantes do distrito de mesmo nome – o maior e o menos povoado dos distritos paulistanos. Quinze quilômetros adiante e o município já é a litorânea Itanhaém. Em dias de céu limpo, do alto do Parque Estadual da Serra do Mar, dá para avistar a orla marítima. Difícil é o céu estar limpo. Na região, a cerração é quase constante.

Nas duas seções da Escola Estadual Regina Miranda Brandt de Carvalho votam 709 eleitores. A 51 quilômetros da Praça da Sé, é o ponto de votação mais distante do marco zero. Ali estudam 830 alunos, do ensino fundamental ao médio. “Cerca de 90% deles dependem dos ônibus de transporte escolar”, diz o diretor, Luis Augusto Rabelo. São crianças que moram na zona rural. Como Rodrigo Vieira, de 17 anos, diretor de esportes do grêmio estudantil, que neste ano vota pela primeira vez.

Todos os dias, para chegar à escola, ele caminha um quilômetro a pé e toma o ônibus escolar – os primeiro cinco quilômetros são em terra batida e os outros três, em asfalto. Quando chove, não vai para a aula. “Com toró, nem tatu de chuteira anda nessa estrada”, explica o motorista do ônibus, José Francisco Ribeiro, o Jacaré. Aos fins de semana, se quer ir até o bairro para ver os amigos, Rodrigo precisa encarar 1h30 de caminhada. Ou pedalar por meia hora. É com sua bicicleta, aliás, que ele pretende votar hoje. Não, não há nenhum ônibus de linha que passa perto de sua casa. Por isso, quando alguém lhe pergunta o que gostaria de pedir ao prefeito eleito, a resposta é rápida: “Transporte”.

Lá no centro, Francisco tem outra preocupação: quer que a prefeitura “dê um jeito” nos moradores de rua que “infestam” a região. “Alguns são gente boa”, admite. “Mas a maioria não presta. Tem até bandido.” Piauiense de Amarante, ele não sabe de onde vem tantos sem-teto. À noite, sente-se obrigado a descer para aguardar a filha, formada em educação física, que chega tarde do trabalho. “Quando tem muito mendigo, fico esperando por ela na esquina.”

A mulher de Francisco trabalha como ascensorista no Chavantes. Conta que, desde de que se mudaram para o centro, há 19 anos, nunca houve tantos moradores de rua. Ela é de Garanhuns, terra do presidente Lula, mas se diz eleitora de Gilberto Kassab (DEM). Hoje, vai justificar o voto porque programou uma viagem para Minas.

Outro que vota num zás-trás é o segurança Afonso Perdomo de Castro, de 52 anos. Ele mora na Rua Tabatinguera e vai a pé para a seção eleitoral. Uma caminhada de 10 minutos. “Não ter de pegar ônibus nem enfrentar trânsito é um alívio”, festeja. Em Marsilac, só a minoria tem esse privilégio.

Narciso Pires, de 77 anos, mora em uma rua sem asfalto, a 100 metros do colégio no qual vota. Na semana passada, tinha agendado uma consulta médica mas disse que não iria permitir que “o doutor mexesse em sua vista”. Há mais de dez anos ele não enxerga com um dos olhos. Seu medo era de que qualquer intervenção prejudicasse a outra vista e o impedisse de identificar direito os botões da urna eletrônica.

Nascido e criado em Marsilac, de onde nunca saiu, Narciso é uma espécie de memória viva da região. Seus avós tinham um sítio onde hoje está localizada boa parte do povoado, incluindo a sua casa. “Mas aí apareceram uns grileiros, tapearam os velhos e tomaram tudo”, conta. Aposentado desde 1992, Narciso foi funcionário da prefeitura durante 34 anos. Era um faz-tudo: limpava bueiros, ajeitava canteiros, capinava. Sempre ali pelo bairro mesmo.

Quando a reportagem do Estado chegou ao seu endereço, ele estava do outro lado da rua, enxada em punho, chapéu, camisa e calças surradas, um velho All Star nos pés. Capinava. E demorou para querer conversa. Capinava. Como quem anda esquecido de que já está aposentado. “Não gosto de ficar muito tempo parado, senão enferruja.”

Pela legislação eleitoral brasileira, nem Narciso nem o estudante Rodrigo precisam comparecer às urnas. A votação só é obrigatória para quem tem entre 18 e 70 anos. Rodrigo faz questão de votar “para fazer parte da escolha”. Narciso é mais direto: “Voto porque sou teimoso.”

No centro da cidade, o aposentado José Predebom, de 80 anos, sacristão da Igreja do Carmo, no largo homônimo, também não acata a dispensa. A pé, leva sete minutos para chegar à sua seção, na Escola de Comércio. “Indo devagar”, ressalta. Ele mora sozinho no anexo da igreja, construída em 1.632 e tombada pelo patrimônio histórico. “Mas eu não sou tombado, hein!”, diz, espirituoso.

O bom humor vai embora quando começa a reclamar do “centro abandonado”. Faz questão de mostrar as canaletas expostas, com água fétida, que tiveram os tampões de ferro, em formato de grelhas, quebrados e furtados. Conta que uma moça pisou em falso e quebrou o pé. “Roubam e vendem para o ferro-velho”, relata. “Coisa de quem está morrendo de fome.” Outro problema é a violência. “Já fui assaltado e amarrado aqui dentro da igreja. Mataram um colega.” Os ladrões procuravam dinheiro e objetos de ouro.

Caseira do sítio paulistano mais perto do litoral, o último antes do Parque Estadual da Serra do Mar, Alda Maria dos Santos, de 48 anos, está literalmente longe desses problemas. “Aqui é sempre sossegado”, garante, poucos metros à frente de sua singela casa que, de tanta cerração, mal pode ser vista. Quando quer ir ao povoado, costuma demorar quase 3 horas, sempre a pé. São 14 quilômetros. Garante que hoje fará o trajeto. “Não sei explicar o porquê, mas gosto de votar”, diz.

Se ela tiver sorte, no caminho será alcançada pelo comerciante João Ferreira, de 46 anos, dono de uma vendinha na beira da estrada, a uns 11 quilômetros da escola. Sua Pampa 88 é do tamanho de coração de mãe. “A quem estiver no caminho e couber no carro, eu dou carona”, conta.

A expectativa é grande em Marsilac. O bairro com jeito de cidadezinha do interior fica mais movimentado em dia de eleição. Durante a campanha, nenhum dos três principais candidatos deu as caras por ali. Mas quem vota acredita que será lembrado. Pena que, na vida real, nem sempre tem happy end.

em parceria com José Maria Tomazela.


Domingo, 5 de outubro de 2008

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