21 de dez. de 2008

Alô? Nós seqüestramos o seu filho!

POLÍCIA

A chocante informação, dada num telefonema, deixou angustiada a empresária Carina Ávila, no fim de março. Se desligasse, seu filho mais velho, Camilo, de 19 anos, seria morto a tiros no mesmo instante, sem nenhuma piedade. Pelo menos era o que prometia a voz nervosa e agressiva do outro lado da linha, enquanto pedia 3 000 reais pelo resgate. "É isso mesmo, dona, ou paga ou vai ter sangue", dizia o interlocutor. Dois dias antes, Camilo havia viajado com os amigos para uma micareta no interior do estado. Ela bem que tentou localizá-lo pelo celular, que tocou, tocou, até entrar o recado da caixa postal. A dúvida entre acreditar na ligação a cobrar e confiar que tudo não passa de um trote de extremo mau gosto já infernizou muitas famílias paulistanas. Há cerca de dois anos a cidade vive uma epidemia de ligações telefônicas anônimas falando sobre acidentes em estradas, seqüestros de parentes ou ameaças de morte. É a nova modalidade de bandidagem, o telemarketing do crime. Embora os enredos sejam um pouco diferentes, todos os telefonemas terminam em extorsões de dinheiro. E são todos falsos.

– Seu filho tem um Gol preto, não tem? Ele falou para a senhora que viajou? Então, pegamos ele na estrada. Está chorando agora. Quer ouvir ele morrendo?

O celular de Carina Ávila soou em casa, enquanto ela preparava o jantar. Todas as informações que ouviu estavam corretas. Já atordoada, ela começou a negociar com o suposto seqüestrador.

– Meu marido não está em casa. Deixa eu falar primeiro com ele...

– Se a senhora desligar, eu atiro agora mesmo no seu filho.

De repente, Carina desligou. Ainda hoje, ela não sabe se por impulso ou descuido. Recorda-se apenas de ter passado os vinte minutos seguintes chorando compulsivamente, até que o filho ligou para casa. Divertia-se com os amigos e se arrumava para uma festa. Não atendeu o celular porque estava tomando banho. "Ninguém se prepara para receber uma ligação dessas, com ameaças a alguém da sua família", diz Carina. "Você fica sem reação, é tudo muito rápido. Mal dá tempo para pensar."

A empresária não pagou o resgate pedido, mas muitas outras pessoas caíram nessa arapuca. Segundo uma estimativa realizada pelo Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), há pouco mais de seis meses, o golpe chegou a ocorrer cinqüenta vezes em um único dia na cidade. Não há dados oficiais, mas a polícia acredita que uma parte das vítimas acaba atendendo às exigências dos supostos seqüestradores. A armadilha varia de acordo com a criatividade dos bandidos (veja o quadro), mas a mecânica é sempre a mesma. Com um celular pré-pago ou clonado, difícil de ser rastreado pela polícia, eles telefonam para uma pessoa aleatoriamente (pegam o número na lista telefônica ou da agenda de algum celular que tenha sido furtado) e tentam ameaçá-la citando algumas informações pessoais. Os criminosos, a maioria presidiários ligados às organizações Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, ou Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, aproveitam a sensação de insegurança das famílias para deixá-las desesperadas, induzindo-as a depositar de 500 a 20.000 reais em uma conta bancária aberta com documentos falsos.

A variante mais freqüente é a do seqüestro. Primeiro, o bandido escolhe um número ao acaso. Liga e, se quem atender for um empregado ou uma criança, apresenta-se como um antigo amigo da família e inventa uma desculpa qualquer para obter informações sobre o dono da casa, como local de trabalho, a que horas costuma chegar, se tem filhos, onde estudam e, por fim, o número do celular. Em seguida, ele telefona para a vítima. Em tom bem mais agressivo, diz que seqüestrou um familiar e enumera o que descobriu como prova de que está falando a verdade. "Pediram 5.000 reais para libertar meu marido", diz a dona-de-casa J.S., que passou pelo drama em novembro do ano passado. "Fiquei imaginando uma arma apontada para a cabeça dele. Só não depositei o dinheiro porque consegui falar com a secretária do meu marido e soube que ele estava em uma reunião, são e salvo."

Outra modalidade comum é a do "trote do bombeiro". O criminoso se passa por um oficial da corporação, relata um acidente e diz que há um parente do dono da casa entre as vítimas. Então solta a isca: pede para confirmar algumas informações e, aproveitando-se do nervosismo que provoca, descobre dados do "acidentado". É quando a abordagem muda. O falso bombeiro se torna seqüestrador e exige resgate imediato. "Tocou meu telefone e um homem avisou que meu filho tinha sido atropelado", relata o bancário aposentado Keizo Uehara. "Quando comecei a perguntar detalhes, se tinham chamado a ambulância, onde exatamente era o acidente, o assunto mudou. Disseram que era um seqüestro." Enquanto Uehara falava com o suposto seqüestrador, sua mulher, utilizando uma segunda linha telefônica de casa, conseguiu confirmar que estava tudo bem com seu filho. Traumatizados, deixaram o telefone fora do gancho por uma semana.

Esse tipo de crime, que não aparece nas estatísticas policiais, se alimenta do medo que qualquer morador de uma metrópole como São Paulo sente de ser vítima da criminalidade. A polícia, é verdade, vem registrando queda em alguns índices. No primeiro trimestre deste ano, o número de homicídios e roubos de veículos, por exemplo, diminuiu em relação ao mesmo período do ano passado. Já o número de seqüestros mantém-se estável. Entre janeiro e março foram registradas 28 ocorrências no estado. Todas reais, com os ingredientes que fazem dessa modalidade um crime hediondo e bárbaro. São Paulo também tem cerca de noventa casos de seqüestros-relâmpago por mês – um a cada oito horas. É um ambiente dos mais favoráveis para que o golpe do celular assuste tanto. Ele é aplicado aleatoriamente e, por isso, atinge qualquer classe social, em um estado com 22.milhões de celulares e 12,5 milhões de linhas fixas, ou seja, praticamente um telefone para cada habitante. "Eu já vi o pessoal pegar desde empresário até faxineira", diz José Elias de Godoy, capitão da Polícia Militar e consultor de segurança. "O valor pedido pelos criminosos varia de acordo com o bairro. Se a vítima mora em áreas nobres, como Jardins ou Moema, eles jogam mais alto."

De acordo com a própria polícia, o trote do terror é um subproduto do uso de celulares pelos detentos de todo o país. Começou há cerca de quatro anos, dentro da Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca, em Campos (RJ). Cinco membros do Comando Vermelho criaram um conto-do-vigário eletrônico, ainda sem ameaças. Tratava-se de uma armação para convencer a vítima de que fora sorteada numa promoção de empresas de telefonia. Para receber os "prêmios" – televisores com tela plana, DVDs ou computadores –, o interessado deveria comprar cartões com créditos de celular pré-pago, usados depois pelos bandidos para se comunicarem. Em quatro meses, o bando lesou mais de 1 500 pessoas em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais. O estilista Clodovil Hernandes foi um dos enganados. Gastou cerca de 2.500 reais em 94 cartões e passou 86 códigos de segurança a golpistas. "Ficamos quatro meses investigando a quadrilha e estudando o procedimento dela", afirma o diretor do Deic, Godofredo Bittencourt Filho. "Quando pedimos ao Rio de Janeiro a transferência daqueles presos para uma penitenciária mais segura, eles acabaram sendo apenas separados em cadeias diferentes. Foi o ponto de partida para a epidemia."

Espalhar a quadrilha pioneira foi o equivalente a criar filiais da escolinha do novo crime. Em pouco tempo o golpe se proliferou pelos presídios fluminenses. E não demorou para chegar às celas paulistas. Os resgates arrancados servem para os presos comprarem outros telefones, pagar o jumbo (comida e roupas entregues pelos familiares semanalmente), subornar funcionários, arranjar visitas íntimas com prostitutas e contratar advogados. Difícil é barrar o esquema. Os bloqueadores de celular têm eficiência relativa. Desde 2001, quando o PCC comandou a maior rebelião da história do sistema carcerário a partir do antigo Complexo do Carandiru, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) instalou o equipamento em oito dos 74 presídios paulistas, entre eles três considerados de segurança máxima. Cada um custou entre 100 000 e 200 000 reais, investimento que não acompanhou as mudanças de tecnologia dos celulares. Hoje, segundo a polícia, nessas prisões são bloqueados os sinais de apenas uma das três operadoras que atuam em São Paulo. Enquanto a solução não vem, a recomendação é evitar o pânico. "Só existe um conselho: não leve a sério, não ceda", afirma o especialista de segurança Ricardo Chilelli, da empresa de consultoria RCI First. "Os bombeiros não ligam a cobrar e os seqüestradores normalmente não agem tão apressadamente. Bata o telefone e procure seu familiar."


Depoimentos de quem viveu o drama

– Alô? Alô? Aqui é dos bombeiros. Acabou de acontecer um acidente. Tem alguém de sua casa fora?

Foi isso o que a avó da universitária Ana Clara Rafaldi, 22 anos, ouviu ao telefone, no segundo sábado de abril. Nervosa – era o horário em que a filha costumava estar no trânsito, voltando do trabalho –, passou a ligação para a neta. "Aí ele mudou o tom de voz. Disse que era um seqüestro e que queria 10 000 reais. Perguntou quanto eu tinha de dinheiro, se havia ouro em casa...", conta. Desesperada, Ana Clara começou a negociar com o bandido. "Não tinha como confirmar com minha mãe. Ele me obrigava a não sair da linha." Por fim, no meio da tensão, a suposta "seqüestrada" chegou em casa. Alívio, nada tinha acontecido.

– Vou logo abrir o jogo! Estou com fotos da criança e nós sabemos de tudo. É melhor você colaborar.

Essas palavras assustaram a secretária Iara Aparecida Silva, 32 anos. O bandido, que se identificou como Nandinho, mostrava que conhecia o bairro onde ela trabalhava e a rotina da família. "Duas semanas antes, eu tinha sido assaltada", relata. "Levaram documentos e fotos de minha filha. Por isso fiquei com medo de que fizessem alguma coisa. Entrei em pânico." Iara não hesitou e seguiu as instruções. No caso, teve de comprar 800 reais em cartões de recarga para celular e passar os números para o tal Nandinho. Para sua surpresa, o criminoso ligou novamente no dia seguinte. "Ele teve a cara-de-pau de me pedir desculpa, disse que falava do presídio de Bangu I e que lá eles tinham uma cota diária de ligações para cumprir."

– Estamos com seu pai aqui. É um seqüestro. Se você não nos arrumar 2 500 reais, ele morre!

"Foi o pior dia da minha vida", diz a advogada D.A.R., 26 anos. "Ele pediu que eu deixasse o dinheiro em um envelope, numa esquina da Avenida Paulista." Um detalhe levou-a a acreditar na história: o número identificado pelo celular de D. era do seu próprio pai. "Tive certeza de que estavam com ele." Disse ao bandido que não tinha como conseguir todo o dinheiro àquela hora. Acabou ganhando um desconto. "Fiz uma vaquinha com os colegas do escritório e levantamos 1 000 reais", conta. "Segui as instruções e deixei o dinheiro no local combinado." A seguir, correu para casa e encontrou o pai, bravo, porque tinham lhe roubado o celular na saída do trabalho.

– Esta ligação está conectada com o coração de seu pai. Se você desligar...

O universitário Fábio Silberstein, 22 anos, viveu o drama no dia 13 de fevereiro. Com informações sobre a empresa de sua família, o bandido fez ameaças e disse que estava com seu pai. Silberstein pediu para falar com ele. "Mas me disseram que o haviam sedado", lembra. O pedido inicial era de 15 000 reais. Foi reduzido para 5 000 reais. Sempre seguindo as instruções via celular, ele foi até o banco do qual é correntista e fez o saque. Ao chegar a outra agência, para depositar o dinheiro na conta do bandido, foi advertido pelo gerente. "Ele disse que o crime já tinha ocorrido ali, que não era para eu cair nessa." Decidiu arriscar e não pagar. Nada aconteceu com seu pai. E, como lembrança, até hoje Silberstein tem o número gravado em sua agenda do celular, sob o nome de "bandido".


As ameaças mais comuns

• LIGAÇÃO PREMIADA
Foi a primeira fórmula aplicada pelos bandidos. A vítima recebe a ligação de um suposto funcionário de alguma empresa telefônica, que a parabeniza por ter ganho prêmios. Entretanto, para recebê-los e continuar concorrendo a outros, deve comprar cartões de celular pré-pago e passar os códigos para outra pessoa que entraria em contato. Com isso, os bandidos carregam os créditos de celulares de presos ou criminosos foragidos.

• ACIDENTE NA FAMÍLIA
Quem liga se identifica como um oficial do Corpo de Bombeiros. Relata um acidente e diz que há um familiar do dono da casa entre as vítimas. Pede então para confirmar algumas informações e, aproveitando-se do nervosismo que provoca, acaba descobrindo dados do "acidentado". É quando o tom da conversa muda. O bombeiro se torna seqüestrador e exige resgate imediato. Pede o número do celular para ir orientando a pessoa até o local do pagamento.

• AMIGO SEQÜESTRADOR
Geralmente ocorre em duas fases. Primeiro o bandido liga para a casa da vítima se apresentando como um amigo dela e fala com algum familiar ou empregado. Puxa conversa, tenta arrancar mais informações sobre a pessoa e pede o celular. Na segunda fase, telefona para a vítima e, em tom agressivo, lista as informações que obteve. Hora do xeque-mate: afirma que seqüestrou um parente e pede resgate.

• POLICIAL ASSASSINO
Dizendo-se policial ligado a um grupo de extermínio, o bandido pede dinheiro para não matar a vítima. Com o objetivo de amedrontar o parente que atende à ligação, descreve algo da rotina da família e garante que tem um dossiê completo. Há uma versão mais light do golpe, na qual o suposto policial diz que o filho da vítima foi encontrado com drogas ou armas e propõe, em troca de suborno, não incriminá-lo.


Para não cair no golpe

• Decore a rotina diária de seus familiares mais próximos, com as rotas e os horários de suas atividades. Guarde na agenda os telefones de colegas e amigos que, numa emergência, possam ajudar a localizá-los.

• Tenha sempre arquivada a relação de empregados e ex-empregados da casa, com os respectivos dados completos, para eventuais investigações policiais.

• Oriente todos em casa, inclusive funcionários de condomínio, a não passar informações pessoais dos moradores, sob qualquer justificativa ou ameaça. A maioria dos golpes bem-sucedidos começa nessas conversas triviais.

• O telefone residencial só deve ser repassado a familiares e amigos. Para as outras pessoas, dê o comercial ou o do celular (que pode ser mudado com muito mais facilidade que o fixo).

• Se houver um telefone instalado na portaria de seu prédio, passe esse número – e não o de sua casa – para os serviços de entrega em domicílio.

• Quando fizer um pagamento com cheque, não escreva no verso o número do telefone residencial. Anote o número comercial, mesmo que seja do marido, da mulher ou do filho.

• Ao receber uma ligação a cobrar, desligue de imediato se não reconhecer o interlocutor. Não prolongue a conversa. Quando de fato houver um acidente, o parente da vítima será informado por um funcionário do hospital ou da delegacia da área, que saberá o nome completo da vítima. Os funcionários do Corpo de Bombeiros não ligam para informar sobre acidentes, muito menos a cobrar.

• Caso telefonem para comunicar um acidente ou anunciar um prêmio – isso é raríssimo, mas uma vez na vida pode acontecer –, peça o nome completo do interlocutor e o telefone para contato. Desligue e retorne o telefonema.

• Em caso de ameaça pelo telefone, desligue e tente encontrar seu familiar. Só procure a polícia se não encontrá-lo ou se as ligações se tornarem constantes.

em parceria com Rodrigo Brancatelli.


Quarta-feira, 17 de maio de 2006.

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