16 de dez. de 2008

Eles sabem que podem morrer

ESPECIAL
A brutalidade levou o pânico a São Paulo e chocou o país. Em menos de quatro dias, a Polícia Militar perdeu mais gente do que em todo o ano passado – foram 22 mortes em 2005, contra 23 entre a noite de sexta-feira (12) e a manhã de terça (16). Outros 22 PMs ficaram feridos. A carnificina, executada pelos facínoras da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), teve como marca a covardia. Os 93 000 membros da Polícia Militar (26 000 locados na capital) juraram morrer, se necessário for, para garantir a segurança do cidadão comum. Mas catorze dos policiais assassinados nem ao menos tiveram a chance de se defender. Atacados durante a folga, eles foram surpreendidos à paisana. Entre as outras nove vítimas, assassinadas em serviço, estavam incluídos até mesmo dois bombeiros, profissionais dedicados somente a realizar salvamentos e a enfrentar tragédias. O dia-a-dia dos policiais militares é duro. Eles trabalham muito e ganham pouco. A carga horária é de doze horas de serviço seguidas de 36 de descanso, mas as horas extras são comuns. Sem contar os adicionais, o piso salarial de um soldado em início de carreira é de 1 240 reais. No extremo oposto da hierarquia, a mais alta patente, a de coronel, tem soldo básico de cerca de 5 000 reais. Apesar dos baixos rendimentos e da árdua rotina, os homens e as mulheres de farda se colocam diariamente na linha de fogo entre a sociedade e os criminosos. Conheça a seguir a história de nove policiais militares que poderiam dar a vida pela sua.

"Sempre quis fazer carreira militar. Tenho orgulho da minha profissão"
ASPIRANTE-A-OFICIAL JULIANA CUNHA,
24 anos, do 11º Batalhão de Policiamento Metropolitano, na região central

Na última terça-feira, quando o caos ainda tomava conta da cidade, policiais que faziam a ronda pelo bairro da Bela Vista encontraram um casal com uma cópia do estatuto do PCC e mais de 200 papelotes de cocaína. Comandando esses PMs (e mais outros duzentos e tantos, só naquele dia) estava uma bela jovem, a aspirante-a-oficial Juliana Cunha, recém-formada pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco. "É impressionante como eles são organizados", comenta ela sobre o fato de ter pego o exemplar da cartilha, manuscrita. Vinda do interior para realizar o sonho de se tornar policial, Juliana está em São Paulo há cinco anos. "Sempre quis fazer carreira militar. Tenho orgulho da minha profissão", diz, sorrindo. "Almejo chegar a coronel." No fim deste ano, quando deve ser promovida a tenente, subirá um degrau desse percurso. Com 1,61 metro de altura e jeito meigo, é difícil imaginá-la combatendo o crime com pulso firme. Grave engano. "Sei me impor quando é preciso", afirma. E é com essa mesma determinação que ela dribla os preconceitos por ser mulher – o contingente feminino representa 10% da PM. Vaidosa, precisa se conter no trabalho. Tem de prender os longos cabelos (que vão até a cintura) em um coque e pegar leve na maquiagem. "Só uso um batonzinho, nada que chame atenção." Distantes 230 quilômetros, seus pais é que estão aflitos com a recente onda de terror. "Liguei para minha mãe todos os dias", conta. Se pensa em voltar à calma do interior? "Não. Gosto de trabalhar aqui", afirma. "Todas as carreiras têm seu risco, né?"

"Treinamos muito, mas praticamos pouco na vida real. É bom que seja assim"
TENENTE ADRIANO GIOVANINNI,
35 anos, do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate)

Os colegas da faculdade de engenharia mecatrônica duvidavam que Adriano Giovaninni fosse mesmo policial militar. "Eu sempre fugi de brigas", explica o tenente. "E as pessoas esperam que os policiais sejam truculentos como os de filmes de ação." Pois foi justamente o autocontrole que ajudou Giovaninni a fazer carreira no Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate). Aos 35 anos de idade, ele deverá ser promovido nesta semana a capitão da tropa. Vai comandar setenta homens, entre eles seis atiradores de elite, doze especialistas em desarmar bombas e seis negociadores (encarregados da comunicação entre a polícia e criminosos em situações com reféns). Convocado para atuar no chamado gerenciamento de crises, o Gate tem em seus quadros apenas policiais aprovados em rigorosos testes. "Treinamos muito, mas praticamos pouco na vida real. É bom que seja assim", diz o tenente. Sangue-frio e boa aptidão física são necessários porque as missões do Gate tendem a não ter hora para acabar. É em momentos como os da semana passada que a companhia mais trabalha (entre outras missões, a tropa invadiu seis presídios rebelados e desativou seis granadas). "Um atirador de precisão já ficou 23 horas com a mira preparada e não recebeu ordem para atirar", exemplifica. Se a ordem viesse, ele teria de estar firme para acertar o tiro. Capazes de atingir um alvo a 50 metros de distância, esses profissionais trabalham com um fuzil de calibre 7,62, com mira óptica, mas pouco o usam. Em dezoito anos de existência do grupo, apenas seis bandidos foram mortos pelos atiradores de elite. "Em 98% dos casos, a negociação resolve o conflito", conta o tenente Giovaninni.

"Já perseguimos seqüestradores e impedimos uma jovem de se matar no Viaduto do Chá"
SARGENTO ARTHUR GENEROSO FILHO,
42 anos, das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam)
SOLDADO REGINALDO BERNARDES,
40 anos, das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam)

Nada irrita mais o sargento Arthur Generoso Filho do que ficar preso no trânsito caótico de São Paulo nos fins de semana. Um dos 190 policiais que fazem parte das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam), ele vive da velocidade. Generoso está acostumado a acelerar a Yamaha XT 600 da PM até chegar aos 160 quilômetros por hora, driblando outros veículos e perseguindo criminosos. "Não consigo mais andar de carro", diz o sargento, que agora também só usa moto aos sábados e domingos. "Em duas rodas, fica tudo mais fácil." O trabalho do policial, que já fez mais de 100 prisões a bordo de sua Yamaha, começa bem cedo, às 6h45. Sempre com um parceiro, ele percorre até as 18h30 quatro grandes corredores – Rua da Consolação e avenidas Ipiranga, Rebouças e Brasil. Roda por quarenta minutos e pára por outros vinte em algum cruzamento. Muitas vezes, quem lhe faz companhia é o soldado Reginaldo Bernardes, de 40 anos, que nunca havia andado de moto até entrar para a Rocam. Precisou passar por um treinamento de três meses que incluiu direção defensiva e ofensiva, além de técnicas para não se machucar (tanto) em caso de quedas. "Nós enfrentamos muitas coisas nas ruas", conta Bernardes. "Já perseguimos seqüestradores e impedimos uma jovem de cometer suicídio no Viaduto do Chá." Trabalhar sempre ao lado do mesmo parceiro também gera atritos. "É uma espécie de casamento em que sempre pode haver brigas e implicância. Mas tudo puramente profissional, claro."

"Depois de três anos, voltei a andar armado"
CAPITÃO ROGÉRIO GUIDETTE,
36 anos, do 4º Grupamento de Bombeiros, na Zona Sul

Acostumados a entrar em ação em situações no limiar entre a vida e a morte, os bombeiros têm aura de heróis. E muitas vezes são mesmo: resgatar vítimas de acidentes e tragédias faz parte de seu cotidiano. Na corporação há quinze anos, o capitão Rogério Guidette não é daqueles que desde pequenos sonhavam com a profissão. "Meu irmão se interessou, e eu praticamente fui no vácuo", lembra. Hoje, os dois são oficiais do Corpo de Bombeiros em São Paulo. Casado e pai de dois filhos, o capitão diz que as últimas ações do PCC mexeram com sua rotina. "Fiquei apreensivo", afirma. "Fazia três anos que minha arma estava guardada. Agora, voltei a carregá-la." No dia-a-dia, dedica-se mais às funções de comando que a patente exige. Mas, em situações graves, ainda sai à rua. "Imagine seis pessoas acidentadas, uma presa entre os destroços e um caminhão vazando combustível", explica. "É quando sou acionado." Ele orgulha-se do dia em que passava de carro pelo centro da cidade e viu o corpo de uma mulher que acabara de se jogar do Viaduto Santa Ifigênia. Estava de folga, mas foi ajudar. "Apresentei-me como bombeiro e peguei um kit de primeiros socorros que sempre trago comigo." Enquanto aguardava reforços, iniciou o processo de reanimação. Depois de um tempo, os batimentos cardíacos voltaram, e ela foi encaminhada ao hospital. "Não acompanhamos o que acontece em seguida. Infelizmente, imagino que muitas pessoas morrem no hospital, dois ou três dias depois", lamenta. Fora do trabalho, Guidette gosta de cantar – já integrou um coral de música sacra e até os 25 anos tinha uma banda de rock – e é ligado em cinema. "Fiz curso de câmera e de iluminador", conta ele, que planeja realizar vídeos institucionais para o Corpo de Bombeiros.

"Não pensava em nada, apenas em evitar uma tragédia maior no Pacaembu"
MAJOR WALTER MOTA,
43 anos, do 2º Batalhão da Polícia de Choque

Uma pilha foi a primeira coisa que acertou a cabeça do major Walter Mota na noite do último dia 4, durante o jogo entre Corinthians e River Plate, no Estádio do Pacaembu. Logo depois vieram um radinho de plástico, cadeiras arrancadas da arquibancada, pedras, baquetas, pias que pertenciam aos banheiros e até pedaços das catracas eletrônicas. Ainda assim, Mota e outros oito policiais militares seguiram firmes e fortes segurando a horda de torcedores que tentava invadir o gramado. Foi uma cena heróica, transmitida ao vivo pela TV. "Na hora não pensava em mais nada, apenas em evitar uma tragédia maior no Pacaembu", afirma o major. Há 25 anos na corporação, Mota é especialista em situações que envolvem multidões – faz a segurança em shows, jogos de futebol e eventos religiosos. Naquela noite de quinta-feira, ele estava posicionado na lateral do campo quando viu uma pequena confusão na arquibancada amarela, à sua esquerda. O jogo estava aos 37 minutos do segundo tempo, e centenas de corintianos começavam a forçar o portão de acesso ao gramado. Apenas com um capacete e um cassetete, Mota reuniu oito PMs que estavam próximos e se postou na frente da torcida. Mais doze policiais chegaram para ajudar quando o portão de fato foi quebrado. A mulher do major e seu filho de 14 anos não acompanharam as cenas pela TV, pois já dormiam em casa. "Minha mulher está acostumada a me ver nessas situações de risco", diz. "Ainda bem que, quando vou ao estádio com meu filho, por lazer, nunca vejo brigas entre torcidas. É porque eu torço para a Portuguesa."

"Já perdi a conta de quantas rebeliões em presídios tive de conter"
TENENTE GERSON PELEGATI,
38 anos, do 1º Batalhão de Polícia de Choque "Tobias de Aguiar"

A sigla Rota sempre foi temida pelos paulistanos. Criadas ainda no tempo do regime militar, as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar passaram a década de 80 sendo chamadas de "a polícia que mata". Com cerca de 800 homens e 100 viaturas, o grupo faz parte do 1º Batalhão de Polícia de Choque e atua tanto no enfrentamento de motins de cadeia como na perseguição a assaltantes armados. "Já perdi a conta de quantas rebeliões em presídios tive de conter", diz o tenente Gerson Pelegati. "Não há meio-termo no nosso trabalho. Somos tratados ou como heróis ou como vilões." Pelegati não queria ser nem um nem outro. Professor primário em uma escola pública por dois anos, viu na Polícia Militar a oportunidade de encontrar uma carreira mais estável. Apesar de estar satisfeito com a mudança, diz que estabilidade foi uma das coisas que não encontrou ali. O tenente já fez quase tudo na PM: estourou cativeiros de seqüestradores, correu atrás de ladrões, invadiu penitenciárias, fez investigações e patrulhou ruas. "É um trabalho que só nos enaltece", afirma. "Eu me sinto realizado quando ouço um 'muito obrigado'."

"Sinto como se estivesse fazendo uma boa ação todo dia"
CABO FLÁVIO HENRIQUE DOS RIOS,
39 anos, da Base Comunitária da PM no Jardim Ranieri, na Zona Sul

Os olhos assustados com tanto movimento e a fala mansa chamaram a atenção dos colegas quando Flávio Henrique dos Rios chegou pela primeira vez a São Paulo, há cerca de seis meses. Recém-promovido a cabo da PM depois de dez anos na corporação, ele morou a vida toda em Bauru, cidade a 321 quilômetros da capital. Também se casou lá, em 2001, e por lá criou seu filho, Matheus, hoje com 6 anos. A vida tranqüila fazendo a ronda nas ruas só foi interrompida quando o convocaram para integrar a equipe de uma Base Comunitária da PM no Jardim Ranieri, na Zona Sul de São Paulo, parte de uma região que anos atrás chegou a ser considerada a mais violenta do mundo. Rios ainda precisaria trabalhar no turno da noite/madrugada, das 18h30 às 6h30. "Cheguei meio ressabiado", diz o policial bauruense. "Mas, para ser sincero, nunca me senti tão em casa como aqui." Durante o trabalho, ele é tratado pelos moradores como um vizinho de longa data. Comerciantes lhe mandam pizzas, refrigerante e pães quentinhos. No Natal, duas famílias fizeram questão de dividir a ceia com os policiais. "Minha maior emoção foi há um mês, quando ajudei a fazer o parto de uma moça do bairro. Sinto como se estivesse fazendo uma boa ação todo dia."

"Quando Edílio morreu, chorei muito"
CABO MARCELO SERAFIN,
39 anos, do Regimento de Polícia Montada Nove de Julho

Edílio tinha 16 anos. Há dois meses, após um tombo, sofreu uma ruptura no estômago e morreu. "Cheguei de manhã e recebi a notícia. Foi complicado, chorei muito...", lembra o cabo Marcelo Serafin, policial desde 1987. "Trabalhamos juntos por quase sete anos, ele era bem parecido comigo..." Edílio era um cavalo alazão. A relação dele com Serafin é o retrato da polícia montada, que só na capital mantém 250 animais da raça brasileiro de hipismo. Diariamente, 130 deles saem do Regimento de Polícia Montada Nove de Julho, na região central, para atuar no policiamento ostensivo, em apoio ao trabalho das viaturas. Em geral são vistos com simpatia pela população. "É comum que as pessoas se aproximem para admirar o cavalo", diz o cabo, que, pai de dois filhos, costuma dar atenção especial à garotada. Nas rondas diárias, os PMs da cavalaria se diferem dos demais. Em vez de cassetete, carregam uma espada. Calçam botas de cano alto, quase no joelho, equipadas com esporas. E usam capacete. Mas, segundo os próprios policiais, o que dá alma ao trabalho é o convívio com os cavalos. Além das atividades normais de qualquer PM, eles gastam diariamente mais de uma hora do expediente para tratá-los, limpá-los e encilhá-los – e, no caso de Serafin, conversar com o companheiro de demoradas e perigosas rondas pelas ruas da cidade.

em parceria com Rodrigo Brancatelli e Sandra Soares.


Quarta-feira, 24 de maio de 2006

Nenhum comentário: