3 de jan. de 2009

O arquiteto que encantou Saramago

PAULISTÂNIA
Desde 1997, Fernando Brandão é o responsável pela estética da Livraria Cultura

A vida do arquiteto Fernando Brandão, de 48 anos, é pontuada por três gênios de áreas diferentes. O da bola, o do traço e o da palavra. Pelé, Niemeyer e Saramago. A seu modo, cada um inventou o próprio jeito de fazer beleza. E são essas belezas, ímpares, que influenciaram a vida e a obra de Fernando. Que, sensível, costuma derramar-se em lágrimas quando percebe que sua criação também emociona.

Paulistano de Santo Amaro, quando era criança seu pai o levava para o estádio toda vez que Pelé vinha jogar na cidade. "Tornei-me 'pelezista'. Ficava vendo só o Pelé, um bailarino. Era tão bonito e impressionante o domínio que ele tinha do jogo", lembra. Os dribles, passes e gols do rei do futebol ficavam gravados na memória do menino que se divertia transformando em predinhos as caixas de remédio de amostra grátis que o pai, médico, trazia para casa. "Fazia cidades. Era minha brincadeira preferida", conta. Aos 12 anos, se tornou escoteiro. E a maior aventura foi um acampamento que durou três noites no Parque do Ibirapuera, em 1972.

O segundo gênio a cruzar a sua vida foi Oscar Niemeyer. Em 1985, quando Fernando cursava o último ano de Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, cismou que o renomado arquiteto seria um dos entrevistados para seu trabalho de conclusão de curso. "Peguei um (ônibus) Cometão e fui para o Rio. Fiquei umas duas horas ensaiando antes de criar coragem para bater na porta dele", diz. Niemeyer estava sozinho no escritório e o atendeu. "Perguntei sobre o compromisso que ele tinha com as futuras gerações", se recorda. "Ele disse que não tinha nada a ver com isso, não havia criado escola nenhuma e cada um deveria fazer o próprio estilo." Essas palavras serviram de estímulo para que Fernando buscasse sua originalidade. "Sou iconoclasta", gosta de repetir.

Após a formatura, começou a trabalhar com interiores. "Fazia pequenos projetos, estandes, essas coisas", conta. Em julho de 1995 produziu, para o Sesc Pompéia, a exposição Tramar e Brincar É Só Começar. "Eram brinquedos de tecido para as crianças", explica. O trabalho lhe rendeu um prêmio do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB).

A grande guinada de sua carreira aconteceu em 1997, quando foi contratado pela Livraria Cultura para repaginar as lojas. O efeito prático que isso representou é muito fácil de ser percebido. Como era uma livraria até os anos 90? "Um depósito de livros", responde Fernando. Seu desafio era transformar esse ambiente. "Os hábitos das pessoas mudam. Hoje a livraria não tem de ser silenciosa, cerimoniosa, com um ar de pseudo-respeito."

Aos poucos, as idéias aplicadas por ele nas lojas da Cultura foram adaptadas pelas principais concorrentes da cidade. O livro passou a ser manuseado e lido pelo freqüentador. O design das livrarias ficou mais bonito e arrojado. "O negócio foi dando certo e virou referência", explica. "Não se vende mais livro sem um café ou sem uma área infantil."

A maior missão ainda estava por vir. Em 2006, o livreiro Pedro Herz, dono da Cultura, decidiu transformar o espaço do Conjunto Nacional onde por 40 anos funcionou o Cine Astor, na Avenida Paulista, na maior livraria do Brasil. Convocou Fernando. "Foi um ano de projeto e quatro meses de obras. Fizemos 26 estudos",diz.

Com seus pufes coloridos e dragões chamativos - "por ser o único bicho da fábula infantil que não existe de verdade, é pura fantasia"- essa loja gigante da Cultura tem 150 mil títulos de livros nas prateleiras e 35 mil de CDs e DVDs. Por dia é freqüentada por 5 mil clientes. Virou programa de lazer para muitos. "Ela faz o papel que seria de uma biblioteca", aposta Fernando. "Tenho certeza de que hoje tem mais gente lendo um livro, de graça, de fio a pavio, na Cultura do que em todas as bibliotecas municipais de São Paulo." E é por isso que ele vem pensando em fazer um trabalho nas bibliotecas da cidade. "Tenho muita vontade de criar uma ONG para mudar esses espaços. Já conversei com várias pessoas e vamos doar projetos para as bibliotecas", revela.

Sua felicidade é indisfarçável ao comentar o resultado positivo de uma livraria cuja organização foi totalmente bolada por ele. "Outro dia, um amigo me disse que, quando ele era pequeno, o programa mais chato era quando o pai o levava a uma livraria", conta. "Hoje essa é a diversão preferida de sua filha de 3 anos."

Durante o processo de reforma, Fernando acabou fazendo amizade com o dono de uma joalheria que desde 1970 está no Conjunto Nacional. "Para mim era muito triste ver fechado o espaço antes ocupado pelo Cine Astor", conta o joalheiro Aike Dossis. O espaço, de 1,4 mil m², quase foi transformado em igreja evangélica e bingo, antes de virar livraria. "Quando estava aquele tapume, eu o convidava para ver por dentro como estava ficando. Mas ele sempre se negava", relembra Fernando.

No dia em que finalmente o tapume foi retirado, o arquiteto chorou. "Foi um ano de sangue e suor. Aí vieram as lágrimas: achei que ficou o máximo", justifica, sem falsa modéstia. E então o joalheiro, também emocionado, disse a ele que iria lhe dar uma jóia de presente. Uma semana depois, lhe entregou dois anéis - um para Fernando e um para sua mulher - de prata, idênticos, com um desenho alusivo à trama dos corrimãos da passarela de entrada da livraria. Novas lágrimas. "Fui para casa chorando, não conseguia nem atender o celular", lembra, com os olhos visivelmente marejados.

No mês passado, nova homenagem. Surge o terceiro gênio da vida de Fernando. O escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, foi conhecer a Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Dias depois, em seu blog pessoal, rasgou elogios ao que viu. Foi o dono da livraria, Pedro Herz, quem encaminhou o texto de Saramago, por e-mail, ao arquiteto. Que, novamente, chorou. "Surpreender a sensibilidade de um Nobel é cumprir a missão na Terra", comemora. Na noite da última quarta, a mesma livraria que o consagrou foi palco para o lançamento do livro Fernando Brandão - Livraria Cultura, que a jornalista Bianca Antunes fez para a coleção Arquitetura Comentada, da editora C4. Aike Dossis estava lá, revendo o amigo arquiteto. José Saramago está lá, com sua laudatória frase estampada logo na página 5 do livro.


Domingo, 14 de dezembro de 2008

Nenhum comentário: