18 de nov. de 2009

Calor, barulho e saudade de casa unem operários

TRÂNSITO
Trabalhadores 'nômades' de todo o Brasil participam da reforma de R$ 1,3 bilhão na Marginal do Tietê

Sol a pino e tal e qual formiguinhas, os 2 mil operários não param nos canteiros da obra de R$ 1,3 bilhão iniciada em junho na Marginal do Tietê - com previsão de entrega em outubro de 2010. É tarde de quinta-feira e os termômetros ultrapassam os 30°C em São Paulo. "Depois de tanto tempo na luta já tenho o couro calejado. Nem suar suo mais", ri o carpinteiro Inácio de Sousa Filho, de 50 anos, exibindo o vazio dos dentes a menos na boca, ao rebater a reclamação do repórter de que fazia insuportável calor.

É com bom humor que a maioria dos trabalhadores encara o trabalho duro, valente e gradual que - conforme promete o governo estadual - vai reduzir em 35% o tempo de viagem dos cerca de 1,2 milhão de veículos por dia que enfrentam os quase 25 km de comprimento da via. Forasteiros de São Paulo na grande maioria, eles compartilham sincero otimismo aliado ao estilo de vida errante. "Rapaz, atrás de obra eu já conheci, nos meus 35 anos de profissão, esse Brasilzão inteiro", orgulha-se Genival Alexandre da Costa, o Doca, de 55 anos, encarregado de uma equipe de 46 pessoas. Nascido em Macaíba, no Rio Grande do Norte, enumera os Estados onde trabalhou: Minas, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraná, Rio...

Da família, não sente saudades? "Sinto, mas é o jeito." Tem mulher, filhos? "Mulher e três filhos, já criados." Fala com eles sempre? "Rapaz, ligo todo dia. Agora tem essas promoções de celular. Antigamente não dava para fazer isso, não." E é assim. Acaba uma obra, começa outra em outro lugar, outra cidade, outro Estado. Vai para a terra natal de três em três meses, no máximo. Às vezes, interrompe esse cotidiano de concreto e, aí, é à beira-mar que ganha a vida. "Fico um ou dois anos refrescando a cabeça, trabalhando de taxista em Natal, que é pertinho da minha cidade."

Com o mesmo espírito nômade, o carpinteiro Inácio deixa a mulher e os quatro filhos em Oeiras, no Piauí, e desde os anos 70 roda o Brasil, de canteiro em canteiro. Fala grosso ao citar seu currículo, que inclui as usinas de Tucuruí, no Rio Tocantins, e Itaipu, no Rio Paraná. Na Marginal, atua na construção da ponte que ligará a Avenida Salim Farah Maluf à via, próximo da Ponte do Tatuapé. Inácio prefere mil vezes uma barragem do que uma ponte. "Aqui é muito barulho o dia inteiro", reclama, apontando para os carros e caminhões que passam rentes ao seu posto de trabalho. "Barragem é bom porque é sempre no meio do mato."

A família ele só vê de seis em seis meses "e olhe lá", mas garante que mulher não falta. "Peão no trecho é como caminhoneiro, arruma muita "colega"." Um pedaço da família o acompanha: o sobrinho Vicente de Sousa Silva Neto, de 26 anos. Há quatro, ele decidiu seguir os passos do tio.

NO CANO
"É fundo. 'Vareia', mas chega a uns 19 metros. 'Nóis' é que nem 'tatu'", define Doca. Ele se refere ao trabalho principal de sua equipe, dentro dos tubos amarelos espalhados pela Marginal. São 110 e servem para a construção dos pilares das pontes. E como é que funciona isso? "É fácil. Igual a fazer poço."

Quando percebe que não é fácil nem se fazer entender pelo repórter, Doca pacientemente se agacha e desenha no chão. "Olha, imagina que lá embaixo é assim. Cabe um só (o tubo tem 1,2 m de diâmetro). O ar comprimido entra e deixa sequinho. Aí o peão desce, escava com martelete e, quando enche a caçamba de terra, grita de lá de baixo. Quem fica em cima puxa."

Oswaldo Honório de Almeida, de 38 anos, é um dos homens-tatu. Chega a ficar embaixo da terra o dia todo. "Na primeira vez, fiquei com medo. Mas depois acostuma", garante ele, que já trabalhou em mais de 30 obras em todo o Brasil. "A gente até combina de trocar (quem fica embaixo da terra e quem fica do lado de fora). Mas prefiro ficar lá em baixo. É mais fresco." Poucas horas depois, Oswaldo passou mal e antecipou o fim da jornada. O calor fez com que sua pressão caísse. No dia seguinte, voltou ao batente.

A mulher e a filha de Oswaldo moram na mineira São João del Rey. Ele vai para lá a cada dois meses. E agradece ao bônus da operadora de celular que possibilita falar sempre com a família. Dos que trabalham na obra, ele é um dos 30 operários que pernoitam no alojamento da empresa, em Itaquaquecetuba. "Lá é animado", diz. "Com a camaradagem, dá para esquecer os problemas."

Doca também pousa lá. O clima é ótimo porque a grande maioria já se conhece de outras obras Brasil afora. "E tem um forró bom num barzinho na frente." Sua mulher não fica com ciúmes? "Xiii... Ela nem sabe, não! Mas, meu irmão, a gente não pode só trabalhar, não. Tem de se divertir também, aproveitar a vida, né?"

Novatos no ramo, os mineiros Jamilson José de Souza, de 36 anos, de Araçuaí, e Marcos Costa Santos, de 38, de Curvelo, não se intimidam diante de tanto trabalho. Eles viram na obra da Marginal uma possibilidade de melhorar a vida - depois de já terem pingado de emprego em emprego. "É a primeira vez que trabalho com carteira assinada", conta Marcos. "Quero me dedicar bastante porque, quando acabar aqui, quem sabe consigo ir para outra obra."

TOQUE FEMININO
Entre os 2 mil operários que trabalham na Marginal, apenas cinco são mulheres. E é só perguntar para a "peãozada" que as explicações sobre essa disparidade não tardam a se repetir: em resumo, "trabalho pesado não combina com elas", dizem. Para João Vilela Neto, encarregado de uma das equipes, isso é bobagem. "Mulher é bom porque é obediente." E é em sua turma que trabalha aquela que já é chamada de "Miss Marginal", a jovem Joelma Aparecida Rodrigues Cardoso, de 28 anos.

Com jeito delicado, voz meiga e belos olhos claros, ela consegue manter a vaidade mesmo com macacão alaranjado. "Brinco pequeno pode, pelo menos", conta. "E é preciso tomar cuidado com a pele. Então, além de protetor solar, também passo bastante creme hidratante."

Nascida em São Roque, no interior paulista, ela já trabalhou "de tudo um pouco": como costureira, em casa de família, em bufê... Há seis meses, foi pedir emprego em uma obra na cidade. "Entrei como servente. Catava pedra, usava pá, enxada... Um encarregado gostou do serviço e me passou para a máquina." Desde então, ganha a vida operando rolo compactador.

Recebe muitas cantadas dos colegas? "Bastante. Levo na esportiva, na brincadeira", diz. "Mas não posso reclamar: eles me respeitam muito." Separada e mãe de três filhos - o mais velho de 12 anos - que ficam com sua mãe, em São Roque, ela tem saudades da família. "Acabo indo para lá só nos fins de semana. Eles acham estranho eu trabalhar com máquinas." E então, após longa pausa, completa: "Eu acho que minha mãe tem orgulho de mim."


Domingo, 8 de novembro de 2009

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