31 de mai. de 2009

Nação Bauru, sobre as flores

HISTÓRIA
Sou o caminho diário de diversos bauruenses e minha utilidade é indiscutível. Você já parou pra pensar nisso?

Meu nome é Avenida. Avenida Nações Unidas. Tenho sete quilômetros e meio de extensão e diariamente sou pisada por milhares de pés, sempre aos pares. Carros cujas rodas rolam sobre mim também são muitos; a fumaça que eles exalam cobrem-me de fuligem. Mas não reclamo.

Sou integração e segregação. Integração porque a cidade passa por mim enquanto eu passo por ela. Segregação porque nasci dividindo uma Bauru rica e desenvolvida, à minha direita, de uma Bauru quase rural e marginalizada, à esquerda. Sou uma tatuagem da cidade. “Não devemos apenas opor a cidade dos dominantes à dos dominados, visto que esse é um recorte ideológico que o ‘fato urbano’ tem repudiado constantemente e cada vez mais”, diz a semioticista Lúcia Helena Sant´agostino, em sua dissertação Bauru, chão de passagem. Assim, através de mim, deve-se pensar a cidade enquanto contexto: são os seus habitantes que criam lugares.

Gênesis – Agora rio, mas outrora fui um Rio. Ribeirão das Flores. De vez em quando, bate uma saudade de ser de novo água; verto lágrimas e o povo reclama de enchente.

Em 1956, o prefeito Nicola Avallone Jr., mais conhecido por Nicolinha, canalizou o Ribeirão das Flores. Começava a abrir caminho para uma nova Bauru, antenada com o progresso. Logo mais, o poeta bauruense Euzébio Guerra iria cunhar a expressão “Cidade Sem Limites”, representando toda a pujança desenvolvimentista em que se acreditava estar mergulhado. “A canalização do córrego mudou radicalmente o perfil urbano da cidade”, acredita Sant´agostino.

O urbanista Adalberto Retto Jr., professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual Paulista, vê a minha construção como parte de algo maior: o plano de metas de Juscelino Kubitschek. “É a tentativa de integração do interior, de mudar o pólo de desenvolvimento do Brasil, então circunscrito à costa litorânea. Brasília está inserida nisso: o desenvolvimento interno do País”, acredita. O meu formato curvo, obedecendo ao curso do rio, quebra o “quadriculado” urbano. “A década de 60 chega para romper com a estrutura anterior da cidade. Bauru, por exemplo, era uma estrutura em grelha. A Nações claramente foi desenhada em outros moldes”, ressalta o professor, “Ela tem um desenho autônomo, criando uma fissura urbana, um descontínuo.”

No início dos anos sessenta, construiu-se à minha margem esquerda um prédio que refletia todo esse sentimento moderno. É o até hoje belo Edifício Brasil-Portugal, de dez andares. Mas quem pode contar melhor isso é o sr. Faruk Rumiê. Ele tem 64 anos e é um dos primeiros moradores do prédio. “Vim para cá em 1964. Dia 25 de março”, lembra. “Esse prédio é muito bom. Um dos melhores de Bauru: arejado, não pega o sol de chapa, um belo jardim na frente. Um senhor prédio.” De sua janela, ele acompanhou toda a minha história. “Quando mudei pra cá, não tinha a Nações Unidas direito.”, explica, “Tinha uma grande feira aqui perto”.

O projeto do prefeito Nicolinha, entretanto, só foi editado e concluído um pouco depois, já no governo de Alcides Franciscato (1969-1973). Aproveitando todo o clima de “milagre econômico”, ele decidiu concentrar todos os esforços e obras na região urbana que me circunda. Eu surjo com meu nome Nações Unidas nesse contexto. Então sou, simbólica e intencionalmente, a vitrine da Bauru moderna, desenhada para a escala dos automóveis e dos ônibus. Sou a divisora das águas (do Ribeirão das Flores?) na história de Bauru. Agora novíssima Bauru.

Mas teve um dia que explodi. Estava revoltada com a ditadura militar e por pouco não mato o presidente Geisel. Um caminhão carregado de gasolina tombou nos Altos da Cidade. Os bombeiros desviaram o combustível para um encanamento que levava até o Ribeirão das Flores, então já canalizado. De repente, o gás incendiou e destruiu-me todinha. Momentos antes, a comitiva presidencial havia passado sobre mim. Foi por pouco!

Hoje – Logo no meu começo geográfico, a quadra 1, há um templo religioso: a Igreja Cristã Monte Santo. E uma placa diz: "Provai e vede como o Senhor é bom". Talvez seja. Considero-me abençoada. “Acho que quando a igreja mudou pra cá facilitou muito pra gente vir”, conta Claudete Aparecida Ferraz da Rocha, fiel há dez anos.

Há outras igrejas em minhas proximidades, professando os mais diversos credos. Nações Unidas, religiões unidas. Nação Bauru, a via da integração: não tenho preconceitos contra nenhuma cultura.

Aliás, é na quadra 2 que fica o Terminal Rodoviário de Bauru. Ou seja: todos os que chegam aqui passam por mim. Nações Unidas, nação Bauru. Um território bauruense que é de todos, sem distinção.

Falando em cultura, não posso me esquecer de contar que também abrigo o Centro Cultural. Nele, importante pólo de estudos e manifestações artísticas, funcionam o Teatro Municipal, a Biblioteca e a Secretaria da Cultura. E é lá que trabalha o Aluísio Lisboa Ramos, vigia. Ele passa o dia todo me vendo. “Adoro olhar a Avenida, é bastante movimentada”, fala, recordando-se que já presenciou alguns acidentes de trânsito e outros acontecimentos inesquecíveis. “Olha, mas o mais trágico, que marcou mesmo, foi a morte de um rapaz. Ele tinha acabado de sair de um show aqui no Teatro e foi morto a pauladas”, narra. O fato ocorreu há três anos.

Outra história de que Aluísio se lembra é de uma vez que chorei tanto, no final do ano passado, que a enchente invadiu o Centro Cultural. “Chegou a entrar água até no Teatro, vários voluntários foram recrutados para ajudar a secar”, conta, rindo.

Cruzo com uma outra grande avenida, a Rodrigues Alves, numa das regiões mais movimentadas de Bauru. São carros, pedestres, gente apressada... o dia todo. “Desculpe-me, mas agora não posso falar”, foi o que disse o frentista do posto de gasolina que fica nesse cruzamento, quando lhe perguntei se poderia conversar.

Já a Avenida Duque de Caxias, também importante constituinte da malha urbana bauruense, posa de aristocrata e não se cruza comigo; passa por cima. Sob o viaduto há algumas mesas de alvenaria onde velhinhos às vezes ficam jogando cartas. Do outro lado, um Posto Policial. Por causa dele, tem-se uma quebra de paradigma: ninguém mora embaixo dessa ponte.

Crianças brincando, casais namorando... Fico feliz no trecho em que tenho o Parque Vitória Régia, um bonito espaço verde. Mas quem pode falar é Avelino Cabral da Silva, que passa grande parte da semana vendendo bolas coloridas ali, sempre olhando para... quem? Sim, para mim, a Avenida. “Já faz uns três anos que trabalho aqui. Gosto de ficar aqui por causa das árvores, do verde”, explica. Ele lembra que antes ali “era mato, só, um brejo e mais nada”. Isso há muitos anos, quando Avelino, hoje com 60 anos, ainda era bastante jovem.

Mais um pouco e o que temos? Praça da Paz. Durante o dia, especialmente no calor, crianças maltrapilhas aproveitam para se refrescar no espelho d´água que enfeita a praça. Já à noite, o espaço é disputado por muita gente, sobretudo jovens, que a utilizam para bater-papo e encher o estômago com lanches e os famosos churros.

Outra via que passa por cima de mim é a Marechal Rondon. E debaixo desse viaduto o que há são frases de cunho político. “Abaixo a Ditadura”, “Fora Sarney”, “Fora Collor”, “Fora FHC”... Logo, logo, alguém vai lá escrever “Fora Lula”.

Pra não dizer que não falei das flores, ainda tem espaço em mim para plantas bonitas, mesmo não sendo eu mais o Ribeirão das Flores. No canteiro da rotatória logo após o viaduto da Rondon, há belíssimas flores amarelas. Mas o transeunte raramente percebe: na pressa de (sobre)viver, nunca pára para colher a poesia do cotidiano.

O meu trecho final é o mais maltratado. Às vezes sinto-me ingrata com os pedestres, não há muito espaço para eles. Não há calçadas decentes desde a Rondon até o Zoológico. E, à noite, é um local escuro, mal-iluminado. Tenebroso.

Essa não adequação ao pedestre foi observada pelo professor Retto Jr. “A Nações não permite a multiplicidade de fluxos. É desenhada prioritariamente para o automóvel.” Ele propõe que, se perpendicularmente é impossível a transposição do pedestre, seja mais explorada a linearidade. “Podia ter mais equipamentos regionais, como o Teatro e a Rodoviária, instalados na Nações. Isso provocaria um maior fluxo de pedestres”, defende.

Administração – Enfim, é inegável que sou um patrimônio do povo bauruense. Mais que isso, as diversas Nações são Unidas, então sou patrimônio de todos que adotam Bauru como sua cidade e mesmo de todos aqueles que simplesmente passam por aqui um dia. Eu sou o caminho, embora não seja a verdade nem a vida.

O problema talvez seja administrativo. Preciso ser melhor cuidada. Em alguns trechos ando suja, como se sofresse do intestino. “Uma senhora avenida, espetacular. Tinha que ser mais bem tratada. Deviam conservá-la melhor do que conservam hoje”, desabafa sr. Faruk, morador do Brasil-Portugal.

Retto Jr. gostaria que houvesse transportes alternativos ao longo de mim. “Por exemplo: por que não uma ciclovia da Rodoviária até a Unesp? E por que não dá para fazer cooper na Nações?”, provoca. Nas minhas bordas, ele defende a existência de um espaço público que privilegie o ir-e-vir dos pedestres.

Uma mudança que vem ocorrendo recentemente é com relação à minha personalidade. Fui concebida como via rápida mas agora estou ficando devagar. Idade? Não, apenas precaução. Diversos semáforos e radares estão instalados em mim para que o motorista tenha um pouco mais de respeito e cuidado, sobretudo com o pedestre. “Agora a Nações tem que ser repensada pela Administração Pública. Uma solução inteligente seria pensá-la como um espaço público, articulando diversos pontos”, finaliza Retto Jr.


Quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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